
Lembro-me de outras vidas que vivi, trago em mim imagens como recortes da vida real, recortes antigos, tão antigos como o começo do mundo.
Fui outrora o sol, a estrela à volta da qual todos giram, hipnotizados pelo seu calor. Irradiei luz, enchi de vida a escuridão do mundo e aqueci todos os corpos que me procuravam. Morri e voltei a nascer. Cada dia morria de novo, para nascer a seguir, senti em cada pedaço do meu ser celeste a força vibrante que impulsiona o universo. Fui Deus para alguns, motivo de medo e admiração para outros. Ninguém me conheceu ao certo.
Fui lua, astro mágico que acompanha a trajectória do planeta azul. Inspirei poetas e amantes, enchi-me de luz e iluminei a noite. Fui palco de paixões, de tragédias, encontros e desencontros. Projectaram em mim o amor e o poder mais profundo do mal, representei a fêmea, a inconstância, o sonho, a loucura escondida. Cada dia morria para nascer de novo. Mais uma vez, ninguém me conheceu ao certo
Fui árvore tosca e densa escondida na floresta. Alimentei-me de solo putrefacto e bebi a luz do sol. Acenei ao mundo os meus ramos, dei-lhe o ar que ele respira. Deixei pousar as aves, dei abrigo aos animais, fui encosto de amantes e arma dos fracos. Sabia de cor a voz do vento que arrasta as tempestades, sabia todas as cores, todos os cheiros e ninguém me julgava viva. Morri uma só vez e o que restou de mim fez nascer as rosas.
Agora sou esta que anda perdida no mundo. Já não irradio calor nem ninguém gira à minha volta, já não ilumino a escuridão nem sou musa de poetas. Fui sol, fui lua e não esqueci. Fui árvore e ainda sei de cor o cheiro da terra, o sabor da chuva e o som do vento. Continuo a ser filha da natureza, parte deste todo que se completa no mapa do meu corpo, sou o elo que une o divino ao real e os torna um só. Sou humana, sou ser viventes, ser com alma, ser que sente, ser que ainda não encontrou o seu lugar.
Pelo menos algo continuará na mesma, algo constante e eterno, serei sempre o corpo morto que fará nascer as rosas.
3 comentários:
E chegará o dia em que serás rosa. E darás cor e alegria ao mundo e aos que nele habitam. Serás novamente sol que ilumina e lua que inspira e estarás de novo viva e não mais serás um ser putrefacto... serás tu a vida de alguém, que não mais te deixará fenecer.
Está simplesmente fabuloso... Como todos os outros textos.
Bela my dear love. Mais um texto ao estilo Florbela Espanca, e aqui faço referencia a este soberana do poesia feminista e passo a citar o seguinte:"Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho,e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...
Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou"
É espantoso como no fundo todos somos poetas e sofredores.
Beijo grande e senão começares a escrever coisas mais alegres passas a ser a nova Florbela Espanca(da), e sou eu que te espanco com minhas próprias mãos.
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