domingo, 26 de agosto de 2007

Outras vidas


Lembro-me de outras vidas que vivi, trago em mim imagens como recortes da vida real, recortes antigos, tão antigos como o começo do mundo.

Fui outrora o sol, a estrela à volta da qual todos giram, hipnotizados pelo seu calor. Irradiei luz, enchi de vida a escuridão do mundo e aqueci todos os corpos que me procuravam. Morri e voltei a nascer. Cada dia morria de novo, para nascer a seguir, senti em cada pedaço do meu ser celeste a força vibrante que impulsiona o universo. Fui Deus para alguns, motivo de medo e admiração para outros. Ninguém me conheceu ao certo.

Fui lua, astro mágico que acompanha a trajectória do planeta azul. Inspirei poetas e amantes, enchi-me de luz e iluminei a noite. Fui palco de paixões, de tragédias, encontros e desencontros. Projectaram em mim o amor e o poder mais profundo do mal, representei a fêmea, a inconstância, o sonho, a loucura escondida. Cada dia morria para nascer de novo. Mais uma vez, ninguém me conheceu ao certo

Fui árvore tosca e densa escondida na floresta. Alimentei-me de solo putrefacto e bebi a luz do sol. Acenei ao mundo os meus ramos, dei-lhe o ar que ele respira. Deixei pousar as aves, dei abrigo aos animais, fui encosto de amantes e arma dos fracos. Sabia de cor a voz do vento que arrasta as tempestades, sabia todas as cores, todos os cheiros e ninguém me julgava viva. Morri uma só vez e o que restou de mim fez nascer as rosas.

Agora sou esta que anda perdida no mundo. Já não irradio calor nem ninguém gira à minha volta, já não ilumino a escuridão nem sou musa de poetas. Fui sol, fui lua e não esqueci. Fui árvore e ainda sei de cor o cheiro da terra, o sabor da chuva e o som do vento. Continuo a ser filha da natureza, parte deste todo que se completa no mapa do meu corpo, sou o elo que une o divino ao real e os torna um só. Sou humana, sou ser viventes, ser com alma, ser que sente, ser que ainda não encontrou o seu lugar.

Pelo menos algo continuará na mesma, algo constante e eterno, serei sempre o corpo morto que fará nascer as rosas.

3 comentários:

Moving on... disse...

E chegará o dia em que serás rosa. E darás cor e alegria ao mundo e aos que nele habitam. Serás novamente sol que ilumina e lua que inspira e estarás de novo viva e não mais serás um ser putrefacto... serás tu a vida de alguém, que não mais te deixará fenecer.

Moving on... disse...

Está simplesmente fabuloso... Como todos os outros textos.

V. S. Rosa disse...

Bela my dear love. Mais um texto ao estilo Florbela Espanca, e aqui faço referencia a este soberana do poesia feminista e passo a citar o seguinte:"Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho,e desta sorte
Sou a crucificada ... a dolorida ...


Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...


Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...


Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver,
E que nunca na vida me encontrou"
É espantoso como no fundo todos somos poetas e sofredores.

Beijo grande e senão começares a escrever coisas mais alegres passas a ser a nova Florbela Espanca(da), e sou eu que te espanco com minhas próprias mãos.